Jogador mais rodado que ele, eram poucos. Pelo menos no Brasil. Mas mesmo assim se sentia um recordista. Eram exatos 30 anos de bola. Aprendeu com 10, profissionalizou-se com 16 e aos 19 já era titular. Veio seleção, o auge, a fama, a regularidade, a queda, as críticas e o reconhecimento por parte de poucos.
Já tinha visto de tudo, desde esposa invadindo concentração a porrada na cara depois de goleada em clássico, dentro do vestiário.Uma das melhores histórias era do jogador que sempre se mostrava inseguro, vomitava antes de todo jogo contra o maio rival. Era tiro e queda. A água despejada acabava com a energia da figura, que já era ruim de bola.
Já tinha jogado com traíra e com jogador que virou irmão. Conheceu esposa no futebol, assim como amante e hoje noiva. Descobriu que o mundo do futebol também dá voltas. Ali era sua vida e poucas vezes tinha percebido naqueles que eram sua companhia constante, ano após ano. Comentaristas, cronistas, repórteres, narradores e locutores. Os jornalistas formados que estudaram quatro anos em alguma faculdade e tinham, assim como ele, o futebol como profissão e meio de vida.
Adorava a chamada imprensa quando era mais novo e começou a aparecer. Ajudavam-no a aparecer e ganhar nome. Às vezes, queria mais aparecer do que jogar. Fama, sucesso, tudo aquilo era sonho desde garoto.
Mas depois aquela turma começou a encher o saco, querendo demais, isso e aquilo. Os anos foram passando e o saco enchendo. Até que estourou. Teve um atrito com um repórter na boca do túnel. Jogou o cara escada abaixo, com uma dezena de pessoas se embolando atrás. Acabou que tudo ficou no disse me disse.
Mas nunca tinha parado para ver, escutar ou ler sobre o futebol, sobre tudo que aquele monte de gente tinha pra falar. Tudo que pensavam e os fazia refletir. Seus interesses e anseios. Em alguns, dava para perceber facilmente para o time que torciam.
Já tinha sido fonte de algumas matérias e personagem de algumas reportagens e tinha até visto o resultado, ficou legal. Mas acompanhar o trabalho nunca lhe passou pela cabeça. Até que ouviu um comentarista, daqueles superrespeitados, falar que ele não era mais o mesmo, que era ruim e estava em um péssimo momento. Era engraçado, se não fosse com ele. Mas conseguiu achar graça, era até verdade.
Seu futebol já não era o mesmo dos tempos em que foi revelado, tornara-se um jogador comum, até desnecessário. Começou a reparar mais nos comentários, narrações e matérias e começou a tomar gosto.
Voltou às manchetes por sempre citar matérias que tinha visto e lido, dando sua opinião, concordando ou não com o teor usado. Justificava os argumentos, repudiava os excessos e enaltecia as homenagens. Tudo sem cursar um semestre de jornalismo.
Virou comentarista e sempre apresentava aquela expressão que ouvira e nunca lhe saíra da memória: ele é ruim e está em um péssimo momento. Com a decadência do futebol, aquilo era a mais pura verdade. E sempre colava.
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Pela última vez
Fazia terapia há exatos 11 anos. Medos de infância, receios, vontades, pensamentos, tudo o que passava pela cabeça, ele falava, como o próprio profissional orientara.
Todas as sessões haviam ajudado muito, superou várias barreiras que nem imaginou que existia e outras que pareciam intransponíveis.
Mas chegou uma hora em que achava que não dava mais. Não adiantava. Foi bom enquanto durou, mas já tinha dado.
Achou a pessoa certa depois de várias tentativas. Terapeuta não é coisa fácil de se achar. A pessoa deve entender, respeitar, consentir, discordar e orientar, tudo isso de um jeito que não agrida o paciente, que o deixe à vontade, mesmo no meio de tantas informações e sensações.
O doutor já o ajudara além da conta, fora um excelente ouvinte, um conselheiro melhor ainda. Parecia que ele colocava uma boa dose de luz no caminho, deixando tudo mais claro e fácil de ser percorrido. Fora o único entre tantas tentativas. E olha que ele quase virou mais um número. Uma insistência de três meses acabou fazendo a diferença e alertando-o sobre a escolha, que quase lhe escapou por entre os dedos.
Parecia que o terapeuta sabia que aqueles três meses eram decisivos. Fez tudo de um jeito muito diferente a partir dali. Talvez os assuntos abordados desde então o motivaram a isso, vai saber...
Mas não dava mais. Apesar da boa relação, não criou coragem de ir e dar o recado pessoalmente. Mais um medo não superado.
Qual o problema de ir lá e encarar a situação? Não dava, preferiu ligar. Ligou, ninguém atendeu. Caixa postal.
Início do recado: "Doutor, sou eu. Vou ser breve. Não dá mais para mim. Não quero mais me consultar com o senhor. Me desculpe. Acho que foi bom, mas não quero mais. O senhor é um ótimo profissional, tenho certeza que faz milagre com muita gente maluca por aí, bem diferente de mim. Eu não sou maluco. Te procurei porque me sentia mal e muita coisa começou a aparecer. Mas doido eu não sou..."
Continou falando por mais 34 minutos. Uma das melhores consultas que tivera. Falando, falando, falando, sem ninguém o interromper, mas também sem ninguém pra olhar lá no fundo do olho.
Falou de tudo, da vida, da morte, do sexo, dele, da famíia, ex-esposa e filha. Do time do coração, da feijoada, do rock e do pub. Da avó, da madrasta e do tio.
Aquela ligação era a última consulta. Fora um desabafo final de tudo e o fizera, sem saber, esquecer o motivo da ligação. ...read more ⇒
Todas as sessões haviam ajudado muito, superou várias barreiras que nem imaginou que existia e outras que pareciam intransponíveis.
Mas chegou uma hora em que achava que não dava mais. Não adiantava. Foi bom enquanto durou, mas já tinha dado.
Achou a pessoa certa depois de várias tentativas. Terapeuta não é coisa fácil de se achar. A pessoa deve entender, respeitar, consentir, discordar e orientar, tudo isso de um jeito que não agrida o paciente, que o deixe à vontade, mesmo no meio de tantas informações e sensações.
O doutor já o ajudara além da conta, fora um excelente ouvinte, um conselheiro melhor ainda. Parecia que ele colocava uma boa dose de luz no caminho, deixando tudo mais claro e fácil de ser percorrido. Fora o único entre tantas tentativas. E olha que ele quase virou mais um número. Uma insistência de três meses acabou fazendo a diferença e alertando-o sobre a escolha, que quase lhe escapou por entre os dedos.
Parecia que o terapeuta sabia que aqueles três meses eram decisivos. Fez tudo de um jeito muito diferente a partir dali. Talvez os assuntos abordados desde então o motivaram a isso, vai saber...
Mas não dava mais. Apesar da boa relação, não criou coragem de ir e dar o recado pessoalmente. Mais um medo não superado.
Qual o problema de ir lá e encarar a situação? Não dava, preferiu ligar. Ligou, ninguém atendeu. Caixa postal.
Início do recado: "Doutor, sou eu. Vou ser breve. Não dá mais para mim. Não quero mais me consultar com o senhor. Me desculpe. Acho que foi bom, mas não quero mais. O senhor é um ótimo profissional, tenho certeza que faz milagre com muita gente maluca por aí, bem diferente de mim. Eu não sou maluco. Te procurei porque me sentia mal e muita coisa começou a aparecer. Mas doido eu não sou..."
Continou falando por mais 34 minutos. Uma das melhores consultas que tivera. Falando, falando, falando, sem ninguém o interromper, mas também sem ninguém pra olhar lá no fundo do olho.
Falou de tudo, da vida, da morte, do sexo, dele, da famíia, ex-esposa e filha. Do time do coração, da feijoada, do rock e do pub. Da avó, da madrasta e do tio.
Aquela ligação era a última consulta. Fora um desabafo final de tudo e o fizera, sem saber, esquecer o motivo da ligação. ...read more ⇒
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