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terça-feira, 30 de julho de 2013

Chama que não se apaga

Tinha só nove anos, mas já era trombadinha malandreado, cheio de ginga e nenhuma simpatia. Estava naquela vida há três anos e aprendeu tudo rápido e intensamente.

Os pais tinha morrido quando o barraco pegou fogo, assim como toda a favela. Teve que ir pra rua, se virar sozinho. Não demorou para encontrar uma turma com história parecida. Todo mundo sem pai nem mãe. Educação era o que não existia. 'Vida loka' era o lema, viver da rua e pra rua, cada dia novo vivo era pra ser comemorado e aproveitado.

No bando, Nêgo era o mais velho, 14 anos, lista grande de crimes (roubo, furto, desacato e até assassinato). Falava como se fosse o chefe e realmente era. Aprendeu muito com Nêgo. No jeito de falar, principalmente. Conseguia assustar e se livrar de várias somente empossando a voz. Puro teatro de rua, mas que dava muito certo. Sempre se livravam de tudo pelo fato de serem menores.

Em um roubo sem sucesso da quadrilha, se perderam. Nunca mais viu ninguém e teve que se virar.

Adorava tiner, mas logo parou. Tapeava a fome constante. O zumbido no ouvido incomodava, mas a onda era bem louca. Não demorou a perceber que aquilo ali prejudicava seu desempenho na criminalidade.

Ficava fraco e sem reflexo, alvo fácil pra polícia e alguns heróis civis que insistiam em aparecer e lhe passar o pé. Pra ir no banheiro era uma dificuldade. Só na rua e bem de madrugada. Para se lavar, usava o chafariz da praça, também bem de noite, quando ninguém estava na rua. O duro era ter que secar no frio, sem sol. Nem reclamava, só sofria.

Foi crescendo e conseguindo se virar. Tinha uma facilidade enorme para se esquecer de vários perrengues, quase atropelamentos, noites de frio, chuva, fome, sede e muita porrada, física e moral. Tinha orgulho de tudo que tinha feito, sozinho, na marra. A marca da sua vida levava no rosto, uma cicatriz grande no lado direito da face. Briga de rua com caco de vidro, coisa tensa que também não demorou pra ficar pra trás. 'É nois', falava, mesmo sozinho.

Até hoje, só não tinha matado. Não tinha coragem. Já tinha presenciado e tido oportunidades, mas não quis. Não sentia falta, mesmo com muitos dizendo que, a partir dali, a fronteira era outra, tudo mudava depois de tirar uma vida. A começar por uma tatuagem.

Isso não queria lembrar e guardar. Pensava muitos nos pais morrendo queimados, pedindo por ajuda. Os gritos ainda ecoavam em sua cabeça.

Em uma noite fria, acordou com um clarão. Incêndio bem ao seu lado. Saiu correndo, mas logo voltou. Conseguiu salvar duas pessoas do prédio em chamas depois de escutar muitos gritos de desespero. Por pouco, não salvou a terceira. Era um prédio abandonado e quando colocou o jovem no chão, viu que era Nêgo. O amigo das antigas estava ali, morto em seus braços.

Militares do Corpo de Bombeiros o elogiaram pela bravura. Conseguiu até mudar de vida entrando na corporação.

Gostava do destino que tinha sido traçado. Do ato de heroísmo, também levara um prêmio. Outra marca, um risco grande de queimadura no braço.

Tentaram colocá-lo para atender ocorrências, mas aquilo era demais pra ele. Os companheiros logo compreenderam que seu desempenho não era o mesmo. O trauma era grande e afetava a produção em momento de emergência.

Foi passado para atender as ligações. Mesmo do outro lado da linha, conseguiu salvar vidas, só na orientação. 'Vai pro último andar, procura um cobertor, pressiona o peito duas vezes, respiração boca a boca' e por aí vai. Fazia bem seu trabalho e o orgulho aparecia novamente, agora por uma causa mais nobre e louvável.

Mas não deu de novo. Cada vez que o telefone tocava, tudo voltava rapidamente em sua mente. Olhava para a cicatriz e começava a falar coisas sem nexo. 'Nêgo, pai, mão, tá vivo?'. Quem precisava de ajuda se perdia e agora mais atrapalhava do que ajudava.

Foi deslocado para o administrativo. Mas tudo insistia em aparecer. A cada telefone que tocava na sala de emergência, a cara sirene que fazia os soldados saírem correndo a todo vapor, entrando nos caminhões, lembrava dos seus casos e daqueles que aconteciam naquele exato momento.

O ex-trombadinha e agora bombeiro era agradecido pelas mudanças. Tinha salvado vidas e evitado catástrofes, mas o fogo que mais queria apagar era impossível. Nos momentos de mais incômodo, jogar água no rosto ajudava, por pouco tempo.

O frio amenizava o sofrimento. As lembranças dos roubos e crimes nem se comparavam com as memórias em chamas que sempre retornavam.
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