Apoiado em seu instrumento de trabalho, Avelino olha pra cima. O céu azul, sem nuvens, sol ameno, temperatura agradável. Não para trabalhar, é claro. O ideal seria se estivesse à beira-mar, cerveja gelada, sombrinha...mas nem tudo é perfeito. Estava realmente sonhando acordado. Despertado pelo carro que entrava no depósito do hospital, a volta à realidade.
Recomeça a limpeza, varrendo até chegar ao corredor interno do imenso prédio de 16 andares. Ali, ele era apenas mais uma das quase 3000 pessoas que circulavam diariamente. Agradecia à Deus pelo emprego e pela condição de estar vivo, com saúde, inteiro. Em um lugar repleto de situações adversas à essa realidade, não tinha como deixar de agradecer diariamente. Cirurgias, macas, ambulâncias e a grande e constante dúvida entre a vida e a morte era o que se mais notava. Viver sob tal dúvida com certeza era cruel. Depender de médicos, aparelhos e quem sabe do destino, fazia de qualquer paciente, ali presente, um cidadão com a presença colocada em cheque à todo o momento.
Mesmo assim, Avelino buscava sempre manter o bom humor e a auto-estima elevada. Era um dos funcionários mais antigos da casa e servia de exemplo para muitos, até mesmo para pacientes e médicos. Viúvo, vivia sozinho e sua vida se resumia ao trabalho. Fora dele, era uma pessoa comum, com poucos amigos, parentes, e devido à idade avançada, aguardava desta para uma outra melhor. Mas tinha boa saúde e isto lhe bastava. Não abria mão de sua cervejinha semanal. Quando se atrasava para o dito lazer, costumava contar a perda de tempo não pelos minutos em atraso, mas pelas cervejas não tomadas. Figuraça.
Turno da tarde: 6º andar, Pediatria. Duas alas repletas de crianças, bebês, pais e enfermeiras. A fila do elevador era enorme, resolveu subir a pé.
Eram apenas mais três horas de trabalho antes de voltar para o conforto do lar no subúrbio da cidade. O trabalho fluía normalmente, quando Avelino, em um dos seus rápidos descansos, percebeu que alguém o olhava, fixamente. Os olhos negros, as mãos pequeninas apoiadas ao berço e o balbuciar lhe chamaram a atenção. Encostou a vassoura na parede, do lado de fora, e aproximou-se. O sorriso no rosto, mesmo com os poucos dentes, era nítido. O braço da criança esticava, como se o buscasse.
Junto ao berço, uma placa com informações sobre o paciente. Diego, 2 anos, cateterismo. Não tinha a menor noção do significado da palavra cateterismo. Ninguém por perto. Os pais deveriam estar por ali, logo voltariam. Na mesa, ao lado, alguns livros infantis, uma mamadeira, abajour e um óculos, provavelmente de um dos pais. A cadeira vazia, ao lado do berço, era convidativa. Sentou-se.
Diego aproximou-se com seus pequenos passos até tocar a mão de Avelino, na grade do berço. A diferença entre os dedos e as mãos era espantosa. Passou a mão pela cabeça da criança, quase careca. O dedo indicador, que parecia mínimo, apontava para a pilha de livros infantis. "Garoto esperto" - pensou Avelino, buscando escolher um dos livros. Não teria mal em ler uma história para o garoto.
Dentre os livros, escolheu Roddin Hood. Leu tudo, do início ao fim, enquanto o pequeno Diego escutava e se distraía com um de seus brinquedos. No fim da história, na última frase, um sorriso, como se a criança agradecesse a aquele mero faxineiro pelo tempo presente ali com ela e pela leitura de um de seus livros preferidos.
Avelino não conhecia a história que acabara de ler, sobre o jovem garoto, que correndo riscos, roubava dos ricos para dar aos pobres. "Que exemplo" - pensou. Deixou o livro juntamente com os outros e antes de sair, disse ao garoto: "Você pode ficar tranqüilo, que tudo vai dar certo." E voltou ao trabalho, antes da volta dos pais do garoto.
Avelino saiu do hospital naquele dia pensando no garoto Diego. O que seria o tal cateterismo? Seria grave? Diego sairia dessa? Acreditava que sim. Um garoto como aquele, tão pequeno, tão novo e carismático não poderia ter a vida interrompida precocemente. Mas sabia que nem tudo podia sair da forma como desejava.
No dia seguinte, Pediatria novamente. A vida de Avelino não apresentava grandes mudanças, mas era tranqüila. Com o acontecimento do dia anterior ainda na cabeça, Avelino subiu as escadas. Há quanto tempo ele não tinha um contato daqueles, com uma criança...tal fato lhe lembrou da época de casado, quando ele e sua mulher tentaram a todo custo ter um filho, sem sucesso.
Avelino foi até o quarto onde Diego estava e para sua surpresa, o berço estava vazio. No entanto, os pertences do garoto ainda estavam lá. Provavelmente saíra para um banho, talvez um lanche.
Decepcionado, continuou seu trabalho. Já era hora de ir embora, quando resolveu passar, mais uma vez, no quarto do garoto, antes de sair para o seu merecido descanso. Para a sua surpresa, lá estava o garoto dormindo, descansando, com seus brinquedos ao lado. Em volta do berço, os pais do garoto o olhavam ao lado de uma enfermeira, que fazia anotações. A mão colocava algumas roupas na mochila. Parecia que tudo havia saído como esperado. Esperou os pais saírem com a criança para ter a confirmação com a enfermeira. A operação fora um sucesso, mas o garoto precisaria retornar para outros exames, antes de receber um diagnóstico definitivo. "Menos mal" - pensou.
Aquele garoto lhe fizera um bem danado. Lhe touxe recordações e sentimentos que pareciam escondidos há muito tempo em algum lugar. Nunca pensara que ficaria tão ligado a um paciente, que antes era como qualquer outro que estivesse ali. Mas o toque e o olhar de Diego fizeram daqueles dois dias, os melhores de Avelino dentro daquele hospital.
E a história de Robbin Hood pareceu real, ao receber tantas coisas boas, de uma pessoa que parecia que não tinha nada a oferecer.
* Baseado numa história real. Homenagem ao menino Esdras.
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